Flávio Gonzalez
Gandalf, o mago de “O Senhor dos Anéis”, disse em uma ocasião ao Frodo que “às vezes tudo o que temos que decidir é o que fazer com o tempo que nos é dado”. Esta decisão é de cada momento, pois o tempo, este “Senhor tão bonito” cantado por Gilberto Gil, é o fluxo de cada instante. Não é preciso decidir amanhã ou ontem, mas tão somente “agora”.
Viver é processo. Isto nos ensinou Jung. O psiquismo humano é “teleológico”, ou seja, avança na direção de uma meta: o processo de individuação. Então, a cada passo, mais do que se perguntar “porque”, é muito mais sábio se perguntar “para que”. Isto é bíblico, inclusive. Está lá em João 9, 1-3, que seus discípulos ao verem um homem cego, perguntaram a Jesus quem havia pecado, se ele, o cego, ou seus pais. Enfim, eles queriam saber “porque” aquele homem era cego. Mas, o mestre lhes respondeu que “nem ele nem seus pais pecaram, mas isto aconteceu PARA QUE a obra de Deus se manifestasse na vida dele”.
A dor, em todas as suas manifestações, cumpre um papel em nossa existência. Nos hansenianos do passado, ditos “leprosos”, talvez o maior de seus problemas tenha sido a insensibilidade à dor. Sim, pois caso colocassem a mão no fogo, sem perceber, nada sentiriam, e a estrutura seria comprometida, destruída. A dor, pois, cumpre uma função. Ela existe “para que” preservemos a integridade do nosso corpo. A febre, todos sabemos, é uma espécie de alarme. Não é o mal em si.
Psiquicamente não é diferente. Temos um “caminho” a seguir, uma “senda” ditada pelo nosso eu mais profundo, o Self, que nos leva ao desenvolvimento, ao processo de individuação, que é, talvez, a razão de ser de nossas vidas. A dor surge quando, distraídos, relutantes ou recalcitrantes, fugimos do nosso desenvolvimento e “atrapalhamos” o processo. A dor psíquica então vem para nos “obrigar” a corrigir a rota, tal como se fosse o “braço esquerdo de Deus”, aquele que nos leva para o caminho, mesmo contra nossa vontade.
Depressão significa descida. Está na prova do DETRAN a pergunta sobre “depressão na via”. Hora de reduzir, de prestar mais atenção no caminho. Vivemos, via de regra, na superficialidade da existência. Correndo atrás de dinheiro, vendo televisão, enfim, “empurrando com a barriga”. Em alguns momentos isto é muito bom. Significa estabilidade, simples conquista de competência, o que é o lado bom da “rotina”. Mas, se paramos de crescer, se abandonamos ou nos desviamos do nosso processo, aí vem a dor em forma de sintoma. Uma aliada poderosa para que avancemos, busquemos uma vida mais plena. Este é o momento de “mergulhar” no inconsciente. Este é sempre simbolizado pelo porão, pela profundidade, pelo fundo das águas, o que é de uma sabedoria impar. Assim, a “depressão” nos lança no “fundo do poço”, pois é lá que estão as “moedas” dos nossos desejos esquecidos, das nossas paixões adormecidas, das nossas possibilidades não vividas, enfim, nossos tesouros escondidos. Para alcançá-los, no entanto, não tem jeito, precisamos ir pra “baixo”. Este é o “para que” da nossa depressão. Nunca voltaremos de lá de mãos vazias, nunca! O que acontece muitas vezes é que a vida nos lança no fundo, faz o seu papel de verticalização, para que deixemos, ainda que contra a vontade, a horizontalidade do raso, e temos dificuldades para sair de lá, geralmente porque não aceitamos o “convite” que ela nos faz. Pessoas “rasas”, sem “profundidade” são muito pouco interessantes e conhecem muito pouco a si mesmas. Só quem mergulhou, só quem sofreu, pode ter aqueles olhos profundos que chegam a impressionar em alguns.
Isto não significa que “depressão” não seja doença. É sim e precisa ser tratada. Em muitos casos o tratamento inicial precisa ser medicamentoso, mas só a psicanálise vai depois nos ajudar a descobrir este “para que”. Porém, como tudo que nos faz sofrer, a depressão não é apenas doença, mas é também cura. É a partir dela que vamos ascender. Veja que no credo apostólico, rezado pela maioria dos cristãos, antes de “subir” aos Céus, Jesus “desceu” à Mansão dos Mortos. É sempre assim: antes da ressurreição, a páscoa. E quem tiver medo da cruz não pode renascer melhorado. É como diz a canção do Dani Black, lindamente cantada com o Milton Nascimento, “Maior”: para ser maior do que era antes há “aquelas dores que deixamos para trás sem saber que AQUELE CHORO VALIA OURO”.
Não que devamos buscar o sofrimento, à maneira de certos masoquistas, nos moldes medievais. Não! Isto é antinatural. O psiquismo é voltado para o prazer, já nos ensinava Freud, e vamos sempre buscá-lo. Mas, como diz o Eclesiastes, há um tempo pra tudo: tempo de falar, tempo de calar, tempo de guerra, tempo de paz. Que tempo você está vivendo agora? Se for o “tempo” da depressão, pois um dia ele chega pra todo mundo, sabendo que é passageiro, nos lembremos, repito, do ensinamento do velho Gandalf: “às vezes tudo o que temos que decidir é o que fazer com o tempo que nos é dado”. Aceite que a vida te levou para o fundo e se pergunte “para que”, o que você precisa colher lá nas profundezas e trazer à tona? Que Atlântida submersa pode estar escondida dentro de suas próprias profundezas? A resposta é acolher o que a vida traz, o que exige coragem porque mergulhar assusta. Depois, “decidir o que fazer”, ou seja, agir na direção que está sendo mostrada, deixando para trás, com ousadia, tudo aquilo que não serve mais, peso desnecessário, e retomando nossa trilha que, invariavelmente, vai nos levar a patamares superiores de desenvolvimento e de … felicidade. Quando tudo passar (e vai passar), tenha a certeza de que você vai olhar para o caminho percorrido e dizer: sim, “eu sou maior do que era antes, estou sou melhor do que já fui ontem”. Somos filhos do mistério e do silêncio. Somente o “tempo” vai nos revelar quem somos.